quarta-feira, 29 de junho de 2011

Relação com Argila



Afundo os pés no barro que, submisso, se esparrama.
Percebo a docilidade dessa matéria que me atrai.
Ela brinca com os meus sentimentos.
Ela atiça os meus desejos.

Estou enredada em suas curvas,
ela me toma em suas dobras,
acaricia e negaceia __ me alucina

Eu a observo.
Em meus devaneios, me faço dócil,
me submeto aos seus caprichos,
descubro sua sensibilidade.

Ela, me espreita.
É assim que aprendo a domá-la.
Ela decalca meus gestos,
retém os meus rastros.

Me atrevo a rasgá-la,
me encanto com a fenda que o gesto deixou,
nos enredamos numa dança de bêbados.

Quem Ela?
Quem Eu?

terça-feira, 28 de junho de 2011

Chove a Cântaros


Esságua que sou mareja pelos poros das paredes de lodo verde.
Esságua que sou explode por uma fenda de rocha.
Despenco e, por instinto, procuro, ávida os caminhos dágua salgada.
Gueirreira, água-chumbo, estilhaço no alto o surdo ribombo do meu poder.
Inevitável choque. Como um espetáculo de ziguezagues mortíferos,
desabo, aguaceira que sou, com a sensação de entrega e gozo, embebida
na doçura da terra sedenta de mim, que juntas parimos a Vida.

Ritabrennand

Bosta mulher Mulher bostA


Não saberia como, nem por que
a espontaneidade do acaso.


Ao olhar a bosta, me senti olhada por ela.
As rupturas, as dobras, os sucos, as fendas...


Eu estava ali inteira à mostra,
como que despida de qualquer pudor.
Minha relação com o barro
atravessou aquele instante.
Fomos contagiados ambos.
Era a própria terra, o vento, a chuva
nos envolvendo, num torvelinho
intenso, atordoante.


Busquei com voracidade
a delicadeza de uma bosta,
a beleza de suas matérias, suas dobras.
Penetrei nos seus labirintos.
Me aliei ao inusitado de suas variedades.
Nos identificamos e nos mimetizamos.


A bosta mirou-se em mim.


Tomei-lhe as dobras, o sulco, a fenda...
A própria bosta fez-se mulher:
experimentou desejos, percebeu as cores,
embebedou-se com os cheiros.
                 Mulherou inteira!


Sentiu ânsias de amamentar.
Atordoou-se com o canto dos pássaros.
Vez primeira, sentiu o gosto da água da chuva.


                  Arrebentou-se mulher!


A bosta mirou-se em mim.
Tornei-me o estrume, misturei-me na terra fresca,
me enfeitei de moscas verdes.
Senti o calor da vida, alimentei raizames,
transmutei-me em seiva, vesti-me de verdes.
Senti a volúpia da brisa e, aqui plantada,
sou ninho, sou sombra,
me quero grávida de passarinhos.


Por não saber do meu começo,
percebi que sou contínua.
Sou como um bicho que capta.


              Só olhos, só asas,
constantemente atiçada por contatos imprevistos,
desencadeantes de pulsões, tensões,
que me levam a expandir-me ou a represar-me.


Consistir, conter, silenciar,
entrar no silêncio do ovo, fazer-me ovo,
insistir em mim a intensidade da vida.


Gerar pássaros:
só olhos,
só asas,
voar!
Pássara-te.

Minhas raízes



Quando eu nasci, aninharam-me,
aninharam-me em berço pintado de verde.
Até que enfim, veio menina!
Respirei pela vez primeira
ouro e verde.
Nasci brasileira e nordestina!

Na casa de engenho com nome de santo
(santo pobrinho!), São Francisco,
minha vó, Franscisquinha,
minha mãe, Francisca,
me deram o nome de minha
Dindinha: Rita.
Nome forte como madeira
de que cupim não gosta.

Da janela do engenho só se via
o lençol verde do canavial.
O sobrado tem tanta historia!
Cada janela é um olho.
Quantos olhos dali já olharam!...

Agora é a minha vez,
porque aqui nasci.
E é daqui o meu começo,
aqui finquei raiz.

Me criei asas e olhos.
E, de onde eu estiver,
arribo de novo neste quintal.
Me sonho de novo nesta varanda,
me molho do cheiro
dos tachos de doce,
da manhã morna,
do gosto da brisa;
revejo os bichos caseiros,
os embuás, as lagartixas,
os sapos, as caranguejeiras,
besouros e formigas...

Passarada mangueiras
pitangas cajás cajueiros

É daqui deste engenho, na Zona da Mata,
do engenho São Francisco,
que escorro de mim
meu caldo de cana caiana,
meu refresco de pitanga,
meu sumo de caju.

Agora é a minha vez,
porque daqui nasci.
É aqui o meu começo.
Aqui finquei raiz!


Ritabrennand


quarta-feira, 15 de junho de 2011

Toco a alma da Flor


Odette e Jaime
Ernest Dias
Paisagens Noturnas (2000)

Valsinha Extremosa (João Baptista Macedo)

Loucura Sã





Quero a palavra seca, vento, Solão que vara a noite, quero a palavra molhada, enverdecida. O cheiro dela, do Sol o calor dele, da chuva o grito dela, do fogo a labareda.

Bateram lá na porteira, ela olhou os pardais que voaram assustados. O vestido pintado terroso, das mãos sempre a limpar com gestos repetidos na borda da saía. Acabara de lutar com o barro, rasgava os pedaços. Tão distraída não escutou os passos do homem estacando, já tão próximo.
Ele olhava entorno sem voltar a cabeça. Girava o OLHAR, só o OLHAR. Ela captou o espanto!
Ela aprisionou aquele silêncio.
___ Um teatro? Para um teatro?
O homem sério despediu-se sujando as mãos entre as mãos barrentas dela, riram-se do descuido.

Ela varou a madrugada adentro, coração aos pulos, conheceu aquele gozo que é bem próximo de um DELÍRIO. As cores arrebentavam de seus olhos. Um teatro? Como colocar esse DELÍRIO em barro? Como fazer o barro gritar? Chorar? Sim, ao ferir o barro buscaria a dor? Um perfil branco falaria de todos os silêncios. Adoçaria com azuis a gargalhada, se houvesse. O espanto estaria presente nas máscaras em azul cobalto, os personagens todos se apresentaram. Os seus gestos escavavam com ternura, já agora suas mãos ficaram lá, já faziam parte.
Ela lembrou do OLHAR. Não precisaria mais do que um OLHAR.
O painel todo veio aos borbotões, os gritos, os sussurros, as gargalhadas, os silêncios, os gestos.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Desgosto de DionisoS


Esse desgosto pede cravos vermelhos.
Nossos cravos Dionisos acorrentaram-se.
Dionisos tresloucados,
em estado contante de orgia,
entre canaviais e alambiques.
Siameses unidos pela raíz,
cravos vermelhos pela raíz unidos.

Quero morrer-te, mas morreria eu contigo.

Ah! Meu coração salvar!...
Deixar-te só com as raízes,
entregar-te ao solo cravo vermelho,
siamês partido.
Já não mais Dionisos.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Nasceu CaianA


E, como era de um costume meu,
sentei no capim, para ver o resto do sol se esconder
e, por causa do cheiro da terra, a mulher
(caroço de manga) deitou-se e sonhou...
Estava plantada, com corpo caroço de manga.
Nasceu, Cana caiana, adocicada.
Dançava com gestos da brisa,
lambida toda
do verde canavial.
Só que tinha os olhos tristes,
molhados, e não era de ovalho,
pois que eram lágrimas.
Seria levada à moenda,
em carro de boi, de boi de canga,
e lá, espremida, esbagaçada,
dela o que restaria?
Só bagaço? Não! Veriam:
o seu caldo teria os gostos,
vez do caju,
vez do araçá,
vez da pitanga!



terça-feira, 7 de junho de 2011

Encontro de peleS



Essas muitas das de mim estremeceram,
quando levantei um pouco da pele adormecida.
De onde vieram tão suadas,
coladas em um só abraço?
Era um jogo de peles peguentas, úmidas...
Colam-se descolam-se grudam-se.
E, de repente, EU, pura pele, corpo pele,
pele memória,
pele paisagens,
pele arrepios,
pele amada,
pele mutante,
pele, poros abertos, bocas e olhos,
pele prazeres,
choro de peles suores.
Rasgo-me em peles, em tantas, ultrapasso a pele.
Toco com delicadeza a alma da pele, apenas toco.
O toque tem o poder de desenhar universos.
Descubro então poderes de estornar a pele,
descubro poderes de deletar memórias,
descubro poderes de criar carapaças,
descubro o poder de redesenhar mistérios,
descubro o poder de ser casca de ovo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Corpo IntensO


Desapareço nesse som desvairado,
nesses abismos desapareço.
Me estanco o gemido do corpo,
me estanco o suor e o querer tanto,
estanco o que me escorre.

Brigo com os lobos que brigam em mim.
Desato o nó da garganta.
Agora uivo com os lobos que uivam em mim.

A mata selvagem acende os olhos
atentos, agudos,
olhos dos bichos,
olhos divagando,
olhos que não vêem,
que apenas olham, respirando.

Deixo-me alucinar pelas paisagens tantas
que me atravessam!
Entrego-me como se fosse corolas
das flores abertas.

Acho-me nas línguas doces dos felinos.

Agora quero silêncio nessa selva.
E, nesse silencioso negrume desse som,
Perder-me de mim.
Perder-me de mim.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Dei de pensar que quantas?



Uma das de mim
quer ter nome próprio,
quer ter nome seco,
como do barro das caatingas.
Nome que atire espinhos
e mate e coma.
Carcarás.      
Nome de respeito que
seja dito com chapéu
na mão.

Outra uma das de mim, essa
não faz conta de coisa nenhuma,
não conta tempo.
Vive, como se diz, no mundo da lua.
Se o vento traz poeira...
ela pensa: não choveu!
Passa a vida sem se dar conta,
sem se dar tento.
Essas de mim
vão ficando pelos caminhos.
As outras de mim nem conheço todas...
Essas de mim são contrárias,
mas faço parte
desses rostos que não são
sempre os mesmos, e brincam
de trocar os corpos...
Que lucidez que pandemônio!